Depois dos primeiros
longos e lentos movimentos do dia pela casa, afinal dirijo-me ao ateliê. Ligo o
computador para atualizar os e-mails e tomar pé das agitações do mundo. As
notícias não me parecem nada boas, ou por outra, parecem-me uma repetição
monótona dos mesmos erros de sempre – intolerâncias muito antigas, que se
arrastam por séculos, gerando diásporas e sangrentas batalhas – emaranhados de
difícil desatamento, num império de precariedade e incerteza.[1]
Não quero me contaminar, mas também não me situo no grupo dos alienados, e
diante desta minha existência, desta
minha humanidade, entre desejos,
neuroses e medos, procuro fazer minha parte: "Creio que todos nós aqui
presentes estamos conscientes da importância e da urgência de dar um passo, de
começar a fazer alguma coisa."[2]
Assim, abdiquei de certos hábitos, como a compra automatizada do jornal diário
(que em minha cidade se resume a um único nome comprometido com o idealismo do
"dinheiro-rei"[3],
e troquei-o pela intensidade de opiniões divergentes que encontro na internet.
Junto a esta renúncia, veio antes até, alguma desobediência e uma tomada de consciência;
de saber-me um quase nada, uma ínfima partícula num todo inapreensível e que me
assombra, mas ao qual estou irremediavelmente atrelada. Essa é a parte do lobo.
Mergulho no
trabalho como forma de resistência aos excessos e às faltas do mundo. Abro a
pasta das imagens mais recentes e me entrego à tarefa de edição das imagens capturadas
no dia anterior. A mesa fica próxima à sacada aberta sobre a rua. A manhã
embala outros fluxos vitais como o das nuvens e do vento; de pássaros e
pequenos insetos que povoam os galhos da grande árvore que se estende imponente
sobre a distância entre meu prédio e o outro, e que se eleva na calçada em
frente. Vindos da rua, rumores apressados invadem o ateliê e me dão outras notícias
do mundo lá fora – sons produzidos por pessoas e veículos que passam com sua
pressa diária, enquanto o burburinho das crianças na creche ao lado me faz
experimentar a felicidade de suas vozes evocando lembranças de tempos muito distantes.
O canto metálico do
bem-te-vi parece anunciar o curso geral de minhas expectativas e me convoca a
agir. The world crashes in, into my
little room.[4]
Enquanto trabalho, a
câmera montada no tripé captura no modo movie essas
movimentações que, para mim, se traduzem como signos da transitoriedade da vida
– talvez resida aí a insistência do uso de uma câmera a beira do esgotamento,
que impregna a imagem de ruídos expondo as marcas da passagem do tempo. Instável
e borrada, a imagem revela silenciosamente a precariedade e efemeridade da vida, como se tudo estivesse a um passo de se
desmanchar. Procuro então tirar proveito desse efeito que a máquina desgastada
adiciona às imagens, principalmente naquelas voltadas para o registro da
paisagem de minha cidade, há muito vulgarizada nos cartões postais e nas
promoções das agências de turismo, como no vídeo Sobre pontes e
travessias (2011). Nele, um barco, ou melhor, a proa de um pequeno
barco desponta no primeiro plano. A forma branca e triangular contrasta com a
cor cinza que satura toda a cena. Plúmbeo é o mar, assim como o céu e alguma
paisagem que se entrevê ao fundo banhada em água de chumbo. No segundo
plano, o fragmento de uma ponte atravessa o quadro de ponta a ponta, ligando o
que não se vê àquilo que não se sabe, e que repousam anônimos fora do plano.
Silenciosa, a imagem demanda uma escuta em constante estado de atenção sobre os
possíveis sons que a povoam – da ponte, do mar e da paisagem ao longe. O barco
não ultrapassa a ponte, não chega mesmo a alcançá-la. Tudo se mantém a
distância como se esta fosse a condição daquele que se lança ao mar. Como se a
distância guardasse em si mesma a qualidade do inatingível. E ao tomar os deslocamentos em geral e as caminhadas em particular, como uma artista-viajante-contemporânea,sigo a buscar uma outra cidade, mantida à distância, e que não estampa os cartões postais.