domingo, 2 de novembro de 2014


Depois dos primeiros longos e lentos movimentos do dia pela casa, afinal dirijo-me ao ateliê. Ligo o computador para atualizar os e-mails e tomar pé das agitações do mundo. As notícias não me parecem nada boas, ou por outra, parecem-me uma repetição monótona dos mesmos erros de sempre – intolerâncias muito antigas, que se arrastam por séculos, gerando diásporas e sangrentas batalhas – emaranhados de difícil desatamento, num império de precariedade e incerteza.[1] Não quero me contaminar, mas também não me situo no grupo dos alienados, e diante desta minha existência, desta minha humanidade, entre desejos, neuroses e medos, procuro fazer minha parte: "Creio que todos nós aqui presentes estamos conscientes da importância e da urgência de dar um passo, de começar a fazer alguma coisa."[2] Assim, abdiquei de certos hábitos, como a compra automatizada do jornal diário (que em minha cidade se resume a um único nome comprometido com o idealismo do "dinheiro-rei"[3], e troquei-o pela intensidade de opiniões divergentes que encontro na internet. Junto a esta renúncia, veio antes até, alguma desobediência e uma tomada de consciência; de saber-me um quase nada, uma ínfima partícula num todo inapreensível e que me assombra, mas ao qual estou irremediavelmente atrelada. Essa é a parte do lobo.

 Mergulho no trabalho como forma de resistência aos excessos e às faltas do mundo. Abro a pasta das imagens mais recentes e me entrego à tarefa de edição das imagens capturadas no dia anterior. A mesa fica próxima à sacada aberta sobre a rua. A manhã embala outros fluxos vitais como o das nuvens e do vento; de pássaros e pequenos insetos que povoam os galhos da grande árvore que se estende imponente sobre a distância entre meu prédio e o outro, e que se eleva na calçada em frente. Vindos da rua, rumores apressados invadem o ateliê e me dão outras notícias do mundo lá fora – sons produzidos por pessoas e veículos que passam com sua pressa diária, enquanto o burburinho das crianças na creche ao lado me faz experimentar a felicidade de suas vozes evocando lembranças de tempos muito distantes. O canto metálico do bem-te-vi parece anunciar o curso geral de minhas expectativas e me convoca a agir. The world crashes in, into my little room.[4]

Enquanto trabalho, a câmera montada no tripé captura no modo movie essas movimentações que, para mim, se traduzem como signos da transitoriedade da vida – talvez resida aí a insistência do uso de uma câmera a beira do esgotamento, que impregna a imagem de ruídos expondo as marcas da passagem do tempo. Instável e borrada, a imagem revela silenciosamente a precariedade e efemeridade da vida, como se tudo estivesse a um passo de se desmanchar. Procuro então tirar proveito desse efeito que a máquina desgastada adiciona às imagens, principalmente naquelas voltadas para o registro da paisagem de minha cidade, há muito vulgarizada nos cartões postais e nas promoções das agências de turismo, como no vídeo Sobre pontes e travessias (2011). Nele, um barco, ou melhor, a proa de um pequeno barco desponta no primeiro plano. A forma branca e triangular contrasta com a cor cinza que satura toda a cena. Plúmbeo é o mar, assim como o céu e alguma paisagem que se entrevê ao fundo banhada em água de chumbo. No segundo plano, o fragmento de uma ponte atravessa o quadro de ponta a ponta, ligando o que não se vê àquilo que não se sabe, e que repousam anônimos fora do plano. Silenciosa, a imagem demanda uma escuta em constante estado de atenção sobre os possíveis sons que a povoam – da ponte, do mar e da paisagem ao longe. O barco não ultrapassa a ponte, não chega mesmo a alcançá-la. Tudo se mantém a distância como se esta fosse a condição daquele que se lança ao mar. Como se a distância guardasse em si mesma a qualidade do inatingível. E ao tomar os deslocamentos em geral e as caminhadas em particular, como uma artista-viajante-contemporânea,sigo a buscar uma outra cidade, mantida à distância, e que não estampa os cartões postais.